Arteterapia: O Ser Tem Estados Inumeráveis

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*Por Renata Ramalho

Nise da Silveira buscou na mitologia o significado dos desenhos de seus pacientes.


Nise da Silveira buscava um embasamento teórico para suas pesquisas. Ela encontrou respostas na obra do poeta francês Antonin Artaud (1896-1948), que estivera internado por vários anos. Uma frase dele sobre um pintor surrealista lhe deu a chave para o que realmente era a esquizofrenia. ‘O ser tem estados inumeráveis e cada vez mais perigosos.’ Nise adotou a expressão ‘os inumeráveis estados do ser’, que virou inclusive título de um de seus livros.

Ela se fundamentou também em outro pilar: os trabalhos de Carl Gustav Jung. Em 1954, ela enviou ao suíço fotos de obras de seus pacientes.Três semanas depois, recebeu uma carta agradecendo pelos desenhos. A recorrência de mandalas nos trabalhos dos doentes marcou Jung. Conhecida desde a antiguidade como símbolo mágico, ela representa o self, conceito junguiano ligado à unidade da psique. Assim como o corpo aumenta a temperatura em caso de infecção, a mente do esquizofrênico — esquizo significa cisão e frenes, pensamento — busca através da mandala reencontrar sua unidade.


Jung e Nise tornaram-se colaboradores. Certa vez, ele perguntou se ela já havia estudado mitologia. ‘Não’, respondeu. ‘Então estude. Senão, a senhora não vai conseguir compreender os desenhos de seus pacientes.’ Nise seguiu o conselho e constatou que, embora eles fossem pessoas em sua maioria simples e sem cultura geral, os mitos apareciam com freqüência em seus desenhos. A explicação, segundo a psicologia junguiana, é aquilo que se chama de inconsciente coletivo. ‘Dois mil anos de cristianismo representam apenas a superfície‘, disse Nise à CH em1987. ‘Nos profundos labirintos da psique vivem ainda os deuses pagãos.’


Uma de suas pacientes, Adelina, reproduzia incansavelmente em seus desenhos a transformação de uma mulher em vegetal. Quando era uma camponesa de 17 anos, Adelina apaixonara-se por um homem casado. Sua mãe proibiu o namoro e trancou-a. A experiência levou-a a enlouquecer e estrangular um gato. A história lembra o mito grego de Daphne — ninfa transformada em planta por seu pai para fugir do assédio do deus Apolo. Ao longo do processo psiquiátrico, Adelina superou a vivência da flor e passou a namorar outro interno, Carlos Pertius.


Carlos, um sapateiro, fora internado pela família ao relatar a ‘visão do planetário de Deus‘ que tivera. Quando pôde pintar,reproduziu a cena: desenhou a flor de ouro (que representa Deus para os chineses) cercada por duas serpentes negras. Travar contato verbal com Carlos era muito difícil. Porém, quando seu cachorro favorito foi atropelado, ele pediu a Nise, falando com clareza, dinheiro para comprar remédios. Foi sozinho à farmácia, comprou os medicamentos e voltou com o troco e a nota fiscal.Aliviado, retornou a seu estado anterior.


Por que fenômenos como esse acontecem? ‘Quem passa por experiências radicais como a loucura, a prisão, a tortura, nunca mais volta o mesmo.’, disse Nise a CH. ‘Os valores se modificam. Uma pessoa curada é uma pessoa chata.’


FONTE: Ciência Hoje

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