A Relação da Criação Artística Com a Psicologia Profunda_III

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*Por Elisabeth Bauch Zimmermann

A imaginação, desde sempre foi um espaço de liberdade que, em princípio, não pode ser tirado de ninguém. Lembra eventos passados e nos permite viver o futuro no espaço vivencial do presente. Por outro lado, o espaço vivencial torna-se, na imaginação, uma realidade simbólica, um espaço intermediário entre o mundo interno e o externo. Para ser útil ao ser humano, deverá estar sempre, tanto conectada ao mundo concreto como ao mundo psíquico. Da união fértil entre esses dois domínios pode nascer uma realidade que os transcende, criando e ampliando as novas possibilidades de vida.

Na visão de Barbara Hannah (1981), a Imaginação é um método de pesquisar o desconhecido, seja quando pensamos num Deus exterior como algo infinito e imensurável ou quando sabemos que podemos encontrá-lo numa vivência interna. No entanto a experiência nos ensina que se afastar dos assuntos conhecidos de nosso mundo consciente para entrar em contato com algo totalmente desconhecido do mundo interno e inconsciente pode ser uma experiência assustadora. Jung enfatizou que a atitude a ser mantida nestes casos é evitar o pânico. Precisamos estar seguramente enraizados, tanto internamente como no mundo exterior, antes de nos arriscar numa experiência de uma viagem psíquica para dentro do desconhecido.


Quando bem utilizado,o método da Imaginação Ativa pode ser de grande ajuda para manter o equilíbrio e pesquisar o desconhecido. Pensamos muitas vezes que ela representa um método de meditação ocidental e, em parte, é isso mesmo. No entanto, é também, um trabalho muito duro e cansativo que empreendemos para negociar com tudo aquilo que está em nossa psique e nos é desconhecido. Jung escreve em Psicologia e Alquimia (1994):“Sabemos que a máscara do inconsciente não é rígida, ela espelha o rosto que voltamos para ela. Animosidade confere a ela um aspecto ameaçador, gentileza suaviza seus traços.”


Assim é importante aceitarmos com cordialidade o fato de que existe uma grande parte da personalidade que age sobre nós sem que saibamos de onde vem a sua influência. Só podemos mudar este fato quando por um motivo ou outro formos obrigados a conviver com este irmão escuro que habita em nós e que poderá nos apaziguar a vida se a ele voltamos uma face receptiva e amigável. A maior qualidade da Imaginação Ativa é colocar-nos em sintonia com o que os chineses chamam de Tao. O sinal chinês para o Tao é composto do sinal para a cabeça e do sinal para caminhar. Richard Wilhelm traduz o Tao por sentido. Outros o traduzem como caminho. A palavra cabeça se refere provavelmente à consciência, enquanto o caminhar pode representar o caminho a ser percorrido. A idéia do Tao, portanto,nos ajuda a fazer uma analogia com a Imaginação Ativa em que se procura trazer para a consciência o que no momento é necessário ao caminho de individuação de um indivíduo. Estar em consonância com o Tao pode ser entendido também como estar em total harmonia com Deus.


A crença antiga amplamente espalhada de que bruxas ou magos tinham o poder de influenciar o meio ambiente,tal como o clima, nos remete ao fato de que o efeito da relação harmônica ou desarmônica que o ser humano tem com seu inconsciente pode provocar a desordem não só na psique como também na natureza exterior. Este tema é extremamente atual neste momento de muitos desastres ecológicos resultantes provavelmente –ou pelo menos, intensificados – de uma relação unilateral com os recursos naturais de nosso planeta.


Normalmente, leva-se muito tempo, muitos anos, até que ambos os lados da personalidade, representados pela consciência e pelo inconsciente se harmonizem, ou “entrem no Tao”. Mas, através da visualização das imagens na objetivação, esta discriminação se torna mais fácil. Bárbara Hannah ressalta a importância de manter as experiências na memória. Afirma que,principalmente para os introvertidos, a Imaginação Ativa é a chave de ouro para a compreensão de sua verdade interior, auxiliando-os a descobri-la também noexterior.


No velho testamento encontramos personagens que procuravam com grande esforços e abrirem à palavra de Deus. Colocavam-se, então, num campo de tensões muito fortes entre opostos desiguais: a psique consciente, com sua limitação de certa forma previsível, e o grande poder da vontade de Deus que pode se efetuar como salvação ou terrível destruição. A esta experiência de entrar em contato com uma dimensão desconhecida e poderosa da psique podemos associar o conceito junguiano de função inferior.


Ela é um cavalo indomável, como nos diz Marie-Louise von Franz, que muitas vezes deixamos de lado na adaptação formal e social, podendo perdê-lo nas vastas florestas e pradarias do inconsciente. A Imaginação Ativa, e a criação artística podem nos revelar novamente esta dimensão instintiva e arquetípica – cavalo rebelde, cervo imponente, colibri sutil – que transita com mais facilidade nas paisagens anímicas inconscientes e que pode nos conduzir à realidade da presença numinosa, ou simplesmente, à totalidade.


Descrevendo seu processo de criação, o dançarino Kreuzberg relatou:


“O processo criativo é muito variado e misterioso, e nem sempre ocorre do mesmo modo.Imagine um tema para ser dançado… que não lhe dê sossego e que o ocupa, sem que consiga obter uma concepção clara da coreografia. Por meio da improvisação,você tenta aproximar-se da formulação definitiva; você medita, desenha coreografias, convoca todo teu saber que acumulou, para o ajudar. Mas nenhuma solução satisfaz, o que mostra que o fruto do pensamento, da invenção e do trabalho, não oferece a natural evidência e o brilho da obra de arte perfeita.Quando você se encontra na maior aflição psíquica e na mais profunda insatisfação, de repente, Deus ilumina o recinto e sua presença, quase imperceptível, traz a solução. Uma outra, talvez, diferente da procurada, mas melhor, a melhor de todas, a única possível. A dança está pronta, seus caminhos, os passos, a movimentação, sua expressão e suas formas, seu ritmo interior e exterior, e só preciso me deixar conduzir e me entregar… Este momento de inspiração chama-o Deus ou intuição, significa a grande felicidade do dançarino. É tão sublime, que não dá para agüentá-lo mais do que por um segundo” ….


Tais estados de integração que seguem após a vivência intensa da disparidade das intenções psíquicas, parecem ocorrer também em comunidades primitivas,durante suas danças rituais. A união da dimensão interior e exterior permite a espontaneidade total e o domínio completo da forma, assim como na pintura Zen surge o momento em que cada traço é exato. O impulso criativo, vivenciado como fogo vindo do centro, realiza essa integração. Momentos de confronto mostram bem a desigual batalha entre a força do eu consciente e a imensa energia presente em qualquer processo inconsciente. A função inferior pode ser a ação que salva ou destrói. David Dan, em seu artigo Além da Casa de Chocolate fala,ao referir-se ao conto de fadas João e Maria:


‘O momento da virada do conto é o momento diante do fogo. Quando a bruxa ordena a Maria que verifique o fogo, ela responde com desamparo. Exaltada, a bruxa, passa por ela e cai no forno. Este momento é a culminação do que Maria proclamou o tempo todo: a sua impotência. Não há nível mais baixo que possa ser alcançado.Submetendo-se à ânsia furiosa da própria bruxa, Maria alcança a enantiodromia da situação… Precisamos… da coragem de Maria, com sua compreensão da entrega”.


Podemos perceber nesta última citação um paralelo com o processo de criação, quando o artista precisa render-se e tornar-se veículo das forças do complexo artístico autônomo. Essas imagens ilustram também inúmeros processos com que entramos em contato no consultório, quando devemos estar atentos ao potencial de desenvolvimento do cliente, procurando fortalecer o ponto de vista consciente, quando necessário,ou então encorajar a travessia para a dimensão inconsciente de capacidades e percepções ainda latentes e sobre as quais se tem um controle bastante relativo.


FONTE: Instituto de Psicologia Analítica de Campinas

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