Satã, Uma Imagem Arquetípica do Mal… (Parte II)

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Uma diferença básica parece haver entre a visão mítica do mal para os judaico-cristãos e para os povos pagãos do ocidente – e aqui incluo, Celtas, Vikings, Gregos, etc. Essa diferença diz respeito ao lugar do mal no universo e na nossa vida. Para os povos pagãos o mal era tão somente uma outra face do processo da vida. Loki, apesar de representar aquilo que os Vikings mais condenavam, não foi banido ou punido, muito menos desprezado ou negado. Ao contrário ele era um deus entre outros deuses, e suas características eram reconhecidas como estando presentes em nossas vidas e em nós mesmos. Tanto é que, muitas vezes, os outros deuses do panteão Viking recorreram a essas mesmas características “condenáveis” de Loki para conseguirem o que queriam. Mais do que isso, Loki era associado ao fogo, elemento do paraíso mítico Viking e fonte de acolhimento para quem vive em terras geladas. Isso revela um aspecto particularmente interessante da visão do “Mal” nas culturas pagãs: que é o entendimento deste como o ponto de equilíbrio necessário para a conquista do “Bem”. O que aponta para um entendimento mais tolerante da pluralidade afetiva da condição humana.


Da mesma forma, Mitos como o do deus grego Dionísio, por exemplo, falam de características não muito desejáveis para o convívio em grupo. Devemos lembrar que Dionísio enlouquecia as mulheres. Isso não pode ser muito bom para o grupo, não é mesmo?!! A loucura é socialmente entendida como o ápice da recusa, da rebeldia e da desobediência, e do ponto de vista da sobrevivência do grupo nada há na loucura que possa contribuir para a sua manutenção. Aparentemente, porém, quando o Mito nos fala da loucura que Dionísio causava às mulheres, ele nos fala da necessidade de confrontarmos aquilo que é indomado em nós, aquilo que é selvagem e que tentamos reprimir. Se não o fazemos por determinação própria, lá estará Dionísio para nos forçar a encará-lo. E o resultado dessa recusa só pode ser a loucura, o caos.


Como podemos ver nesses breves exemplos, a definição arquetípica do Mal no Imaginário Coletivo da humanidade está intimamente associada aos nossos medos, às nossas dificuldades para atuar na vida e continuar vivendo como um grupo. Acontece que também somos indivíduos, mesmo sendo integrantes de um grupo, e ao reconhecermos e nomearmos aquilo que é mal para o grupo também o fazemos para nós mesmos como indivíduos. O mal do ponto de vista individual, portanto, também é aquilo que expressa nossos medos, nossas dificuldades para atuar na vida!


Talvez, por essa razão, o judaísmo-cristão tenha propiciado a cisão total entre o bem e o mal, relegando para sempre o mal aos confins do indesejado, do não dito, do inconsciente. Devemos ter em mente que o cristianismo foi disseminado no ocidente por Roma. Roma era um império militar. Ou seja, Roma era uma organização política e militar que tinha como propósito não só sobreviver mas dominar todo o mundo conhecido. Ora, se eu quero dominar a todos eu não posso permitir a possibilidade da desobediência, da rebeldia, da recusa. Para dominar eu necessito que todos sob meu comando acreditem numa só verdade, num só modelo… Para isso eu devo eliminar todo e qualquer vestígio de contestação.


É interessante pensar que muitos povos houveram que conquistaram territórios estrangeiros, que escravizaram povos vencidos e que lutaram pela supremacia muito antes de Roma. Mas, muito provavelmente, a obsessão pela própria imagem, e por sua disseminação, tenha garantido ao Império Romano o pioneirismo histórico na busca da dominação cultural. Roma não queria somente ganhar o território inimigo, Roma queria transformar o inimigo em romano. Transformar o inimigo em romano significava fortalecer o império e as idéias propagadas pelo império. Nesse contexto, não há idéia divergente que possa ser tolerada. Assim, nos estertores do poderio imperial, Roma adotou o cristianismo como sua identidade pátria, e tudo o mais que não era cristão deveria ser conquistado (dizimado, exterminado). Nada mais natural, então, do que delegar à toda cultura não romana e não cristã a alcunha do Mal; para que, assim, o bem seja àquilo que a nova Roma – sede da Igreja cristã – eleja como tal.


Bem, se eu divido o mundo em dois, se eu recuso qualquer oposição, tudo que se opõe será mal. E dessa forma o mal foi mandado para o subterrâneo do imaginário humano. A Imagem Arquetípica do mal passa assim a ser representada por toda e qualquer forma de rebeldia, por toda e qualquer tentativa de perturbar a ordem, por todo e qualquer modelo que conteste a lei e aquilo que está estabelecido. Logo, o Mito primordial que representa o mal no Imaginário ocidental não mais se relaciona às limitações do grupo/indivíduo para lidar com a vida, mas se torna a própria representação da contestação ao pensamento judaico-cristão. Assim o mal passa a ser representado pelo Mito de Satã, contado e descrito pelos povos judaico-cristãos, ao mesmo tempo que incorpora elementos das culturas pagãs subjugadas (e/ou miscigenadas) pela cultura da Roma cristianizada.


É fato que, do ponto de vista do desenvolvimento do imaginário coletivo ocidental, as características indesejáveis de nossa condição humana tornaram-se indelevelmente associadas à figura do Diabo judaico-cristão. A luxúria, a arrogância, a ganância, o ódio, o autoritarismo, a violência, a inveja, enfim, qualquer sentimento ou comportamento vinculado aos excessos passou a pertencer ao reino das trevas, território em que a Imagem Arquetípica do Mal é representada pela figura de Satã.


Na cultura de povos politeístas as paixões humanas pertenciam a todos os deuses. Ninguém em sã consciência poderia dizer que qualquer deus de um panteão politeísta é totalmente bom, no sentido de que a bondade é aquilo que não destrói ou interfere no caminho de outrem. Todos nós sabemos que os deuses dos povos politeístas são capazes de amar e odiar, de construir e destruir.


Essa distribuição dos sentimentos e comportamentos humanos não desejáveis/agradáveis por vários deuses não dependia do fato de que, apenas, uma única entidade espiritual fosse a portadora do mal. Por um lado, mesmo havendo deuses como o escandinavo Loki, ou o grego Dionísio – cuja função simbólica parece ser a de concentrar esses aspectos indesejáveis –, o fato de todas as divindades serem portadoras de sentimentos contraditórios (bons e maus), fazia com que no imaginário humano tais sentimentos não se encontrassem totalmente dissociados.


Por outro lado, numa sociedade monoteísta que cultua um único deus a organização do bem e do mal ao nível do imaginário tende a polarizar os diferentes aspectos da emoção e do comportamento humano. Se do ponto de vista psicológico nós, querendo ou não, necessitamos lidar com esses aspectos indesejáveis, eles, de alguma forma, precisam ser elaborados no nosso imaginário. Como a figura divina tende a estar originalmente associada à vida (à sobrevivência), torna-se necessário a existência de uma figura oponente que possa representar tudo àquilo que se opõe à vida e, obviamente, a deus. Como visto anteriormente, a disseminação do cristianismo no ocidente estabeleceu uma nova ordem cultural, cujas conseqüências determinaram mudanças em todos os níveis da organização humana. A religião monoteísta, com seu modelo arquetípico polarizador das emoções e do comportamento humano, conferiu aos sentimentos indesejados a alcunha do mal absoluto. Com isso subtraímos de nossa consciência àquilo que não considerávamos adequado ao bem estar individual ou do grupo.


E, psicologicamente falando, aquilo que foi subtraído é a Sombra. A Sombra é tudo aquilo que consideramos feio, destrutivo, maligno, sujo, impuro, desarmônico, selvagem, egoísta, etc., mas que trazemos dentro de nós. Em geral, associamos à Sombra sentimentos e comportamentos negativos, mas podemos suprimir sentimentos e comportamentos positivos se não nos sentimos confortáveis com eles. Por não considerá-los adequados para o convívio em grupo tentamos reprimir, negar, destruir. O confronto com a Sombra é o confronto com àquilo que habita em nosso interior mas que preferiríamos que não estivesse lá. Pois esse confronto inevitavelmente nos obriga a despir a máscara social e civilizada que adotamos como nossa personalidade (a Persona), e que usamos para sermos aceitos no grupo e garantir nossa sobrevivência junto a nossa espécie.


Numa época como a nossa em que a imagem social anda subjugada pela ilusão da perfeição, não é de se estranhar a exposição crua da maldade humana. A busca por modelos inatingíveis de beleza, riqueza, juventude e performance está na ordem do dia, povoa o imaginário coletivo com força arquetípica, nos induzindo a negar tudo aquilo que é feio e destrutivo em nós. O Mal, jogado para o inconsciente pessoal e coletivo, é a Sombra que ofusca a luz radiante do sonho de perfeição. O Mal é o outro, o conteúdo guardado no inconsciente que projetamos no mundo exterior. O Mal é o estrangeiro, é o pobre, é o rico, é a mulher, é o homem, é o negro, é o branco…O Mal é qualquer coisa que, aparentemente, não possa ser identificado como sendo meu, ou do grupo ao qual pertenço. A violência, a pobreza, o luxo, o fanatismo, o ceticismo, a inteligência, a estupidez…qualquer coisa pode encarnar o mal absoluto, desde que seja associada ao outro.


Finalizando essa conversa. Tomemos, então, como válida a idéia de que o mal na contemporaneidade seja realmente percebido como algo que pertence sempre ao outro e nunca a nós mesmos. Sendo verídica a pressuposição de que cada época e cada grupo social elege uma Imagem Arquetípica do Mal, ou seja, um ou mais mitos que expressam as ameaças à sobrevivência do grupo e do indivíduo. Muito provavelmente, figuras como a de Satã já não causam em nós o temor avassalador que causavam no homem medieval, por exemplo. E isso se daria porque na nossa época a percepção do que é a maldade nos leve a entender que o Mal é o próprio ser humano, o outro que nos afronta com o obscurantismo dos nossos conteúdos inconscientes. Melhor dizendo, que nos afronta com os desejos, as emoções, os sentimentos, os pensamentos e as ações que, por alguma razão, preferimos acreditar que nunca visitaram nossa consciência.


Por Angelita Corrêa Scardua

Leia a primeira parte do artigo AQUI

2 Respostas to “Satã, Uma Imagem Arquetípica do Mal… (Parte II)”

  1. Christiane Zunti Says:

    Assim a sociedade sempre caminha para a polarização e vai de um polo a outro sem se dar conta que é essa polarização que produz uma sociedade doente e abusiva.

    Valeu Angelita pelo texto.

    Chris

  2. Grupo Papeando Says:

    Olá Christiane,
    Primeiramente, agradecemos seu comentário. Realmente, aqui no Brasil temos essas polarizações, que tendem a ser de um extremo para outro, e isso vai sempre nos prejudicando a longo prazo. Volte sempre ao blog, seus comentários serão sempre bem vindos!

    Saudações,
    Grupo Papeando!


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